A alta dos preços da carne refletiu nos valores dos cortes de segunda e de terceira. Açougues relatam que carcaça temperada, pé de galinha e pescoço, entre outras partes de boi, vaca e porco, tiveram um aumento de procura e também encareceram.

Não há dados nacionais sobre esses cortes. Em São Paulo, o pescoço de frango teve elevação 15,79% no preço em setembro na comparação dos 12 meses, segundo a consultoria Safras e Mercados.

A carcaça temperada de frango subiu 45%, o dorso, 60%. Entre os suínos, a maior alta foi no espinhaço (23,91%), que é a “coluna” do porco, e na orelha (20%).

“Nas lojas de São Paulo, Minas, Mato Grosso, Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro, todos confirmaram que essas carnes foram mais vendidas por conta da crise”, diz o cofundador da Rede Mais Açougues, Diego Moscato. O pé de frango lidera, com um crescimento de 26% no consumo.

A Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) não disponibiliza dados sobre esses cortes e a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se restringe a carnes de primeira e de segunda ou ao produto como um todo, no caso do frango e porco.

A realidade dos açougues

A Rede Mais Açougues, com unidades em 10 estados, diz que as ‘carnes de ossos’, como eles classificam as partes menos (ou nada) nobres, ficaram 100% mais caras entre o início da pandemia e agora.

Segundo Moscato, o confundador, com a alta da procura, foi preciso equiparar o valor desses cortes com o restante das carnes.

O empresário conta que a venda de carnes de primeira, como a maminha, teve uma queda de 22%. Para ele, o consumo ainda é sustentado pelas unidades que ficam em regiões de classes A e B.

O abandono da carne vermelha foi a saída para 67% dos brasileiros economizarem nas refeições, de acordo com a pesquisa Datafolha divulgada em 20 de setembro.

A alta acumulada no preço da carne bovina chegou a 36% entre agosto de 2020 e 2021, segundo o IBGE. O frango encareceu até mais nesse período: 40,4%. O ovos subiram 20%.

“Tivemos uma mudança radical depois do aumento da carne. Eu vendia boi. Muita gente migrou para porco, frango, reduziu a quantidade de carne mais cara e o pessoal começou a reduzir carne mais em conta, sim”, relata Elizangela Neres, dona de um açougue em Paiva (MG).

“O salário das pessoas da minha cidade não é compatível. (Para) quem ganha salário mínimo está difícil comer carne. Vamos ser realistas, tem que migrar, reduzir gastos. Acho que esse está sendo o pensamento dos consumidores”, diz.

A também açougueira Dinabi Melanias, de Várzea Grande (MT), aponta que o acém – considerado carne de segunda – , o frango e o pescoço de galinha se tornaram os carros-chefes. Na loja de Nazareth Aparecida, em Belo Horizonte, os consumidores buscaram mais suínos e pé de frango.

Além disso, os miúdos, como o fígado, e os processados, como a salsicha, também tiveram uma boa procura, segundo o açougueiro Alvimar Gaspar, do Rio de Janeiro.

Ossos e a fome

Imagens de pessoas buscando ossos que costumavam ser descartados por frigoríficos e açougues (veja o destino ao fim da reportagem) viraram um retrato da realidade de famílias de baixa renda nos últimos meses.

Mas, não é de hoje que a carne está cara, nem é recente o consumo de ossos como única opção para a população mais pobre, de acordo com o diretor-executivo da ONG Ação Cidadania, Rodrigo “Kiko” Afonso.

“R$ 170 é a média do Bolsa Família, com isso, vamos combinar, como compra comida para a família, paga o aluguel, roupa, transporte para arrumar emprego? Independente do preço da carne, já não poderiam comprar com o preço anterior”, afirma.

“Já tinha uma defasagem enorme do salário dessas pessoas. Com o aumento tirou toda a possibilidade dessas pessoas se alimentarem de arroz, feijão, carne e etc”.

Além de doações, existe a venda dessa mercadoria.

A prática era uma exceção para o açougueiro obter um retorno em cima do que seria descartado, mas, com a elevação generalizada dos preços, acabou se tornando uma regra e dificultando o consumo dos mais pobres, afirma o pesquisador do Instituto de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre) Matheus Peçanha.

Em Santa Catarina, a Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) emitiu uma recomendação para que os estabelecimentos doem os ossos e não os vendam.

O comunicado foi feito após um açougue em Florianópolis estampar o cartaz ”Osso é vendido, e não dado” na loja e viralizar nas redes sociais. A mensagem foi retirada após a polêmica.

A base para a recomendação do Procon é que a prática pode ferir Código de Defesa do Consumidor por exigir dele “vantagem manifesta excessiva”.

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Contudo, a venda de ossos não é ilegal, segundo o Ministério da Agricultura. Mas eles devem ser inspecionados e “ter procedência de local regularizado, com inspeção federal (SIF), estadual (SIE) ou municipal (SIM)”, diz a pasta, em nota ao g1.

Dieta pobre

Parte da população recorre aos ossos para ter uma proteína nas refeições e, de fato, esses produtos possuem resquícios de proteína animal, explica a doutora em nutrição e professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Ingrid Dantas. Mas uma dieta restrita de ossos pode levar à desnutrição. Isso porque, além de pobres em proteína, eles são ricos em gordura.

Após o cozimento, diz a especialista, esses restos de proteína grudados aos ossos se solubilizam, gerando no caldo, mas os nutrientes estão em quantidades insuficientes, já que são apenas resquícios da carne.

Além disso, o consumo excessivo de ossos pode acabar prejudicando a saúde, já que a medula óssea é rica em gordura.

“Então, a gente vai ter duas facetas da desnutrição: a proteico energética – onde pode estar tendo um baixo consumo de proteína – e a desnutrição que pode levar à obesidade por conta de um consumo maior de gordura”, afirma.

Segundo a nutricionista, este tipo de alimentação fere o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 6 da Constituição Federal, que determinam que todos têm direito a uma alimentação adequada e, no caso da Constituição, que este direito deve ser protegido pelo governo.

Não somente os ossos, os açougues também têm relatado um consumo maior de processados, como salsichas. A nutricionista explica que isso também faz mal à saúde.

“Apesar de trazer um aporte proteico para quem está consumindo, vem com isso a ingestão exagerada de gordura e sal, além dos aditivos que estão presentes nos produtos e podem gerar um quadro de desnutrição direcionadas à obesidade”, diz.

O caminho dos ossos

Quando não são voltados à venda, os ossos, após a desossa, seja no frigorífico ou em açougues, são direcionados para indústrias de rendering, que transformam os subprodutos do animal em novas mercadorias, explica Augusto Antoniazzi, diretor industrial do frigorífico Zimmer.

Ele relata que as peças normalmente são divididas entre dianteira, traseira e costela, e, nesse processo, a indústria frigorífica é responsável pela desmontagem do animal.

O direcionamento para o rendering ou, como também é conhecido, graxaria ocorre logo após serem feitos os cortes que dividem a carne que chega até a casa do consumidor, como a maminha e o coxão mole.

Vão para rendering, portanto, os ossos, membranas e partes retiradas do animal durante o processo de limpeza.

Na indústria, os ossos passam por um cozimento e a prensagem, onde eles são separados do sebo, que por sua vez, é usado na indústria de cosméticos e biodiesel, por exemplo. Já os ossos seguem para a moagem, onde são transformados em farinha para a alimentação animal.

“É um processo de reciclagem. Em frigorífico tudo se reaproveita, desde a água até todos os pedaços do animal, não tem descarte, tudo tem um reuso”, afirma.

Antoniazzi explica que esta destinação é feita porque não é costume de o brasileiro consumir ossos. Porém, o caminho para a indústria de rendering não é obrigatório. O açougue ou o frigorífico pode encaminhar o produto para lixões ou doações também, por exemplo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fontes: REDAÇÃO + g1