PÂMELA X INDAIÁ – OU QUANDO OS PAPÉIS SE INVERTEM
* Flávio Lúcio Vieira
O caso de agressão que envolveu a babá Indaiá Moreira e a ex-primeira-dama da Paraíba, Pâmela Bório, é muito didático para mostrar pelo menos duas coisas: a persistência da típica mentalidade senhorial/colonial que ainda nos assombra em pleno século XXI, e o quanto parte da imprensa, na sua ânsia de atingir o governador, se esforça por deslocar o foco do verdadeiro debate que o caso enseja, procurando transformar a vítima em algoz.
Na noite desta quarta-feira, 03, no início da madrugada, a Delegacia de Crimes Contra a Pessoa da Capital recebeu a visita da babá Indaiá Moreira, de 47 anos. Indaiá estava lá para registrar uma agressão.
Segundo consta no Termo de Declaração onde relata a ocorrência, por volta das 22h30 da terça, dia 2, sua patroa invadiu seu quarto para exigir que a mesma fosse embora para que não contaminasse com a virose que a deixara de cama nem a ela nem a seu filho, de quem Indaiá cuidava.
Como era tarde e como estava doente, Indaiá apelou para ficar e não foi embora. Como ela também relata que já tinha se comprometido a deixar a residência da patroa no dia seguinte, é presumível que a discussão tenha começado antes, em outro cômodo do luxuoso apartamento em que mora a patroa na praia do Cabo Branco.
Mesmo assim, a patroa quis porque quis que ela dali se retirasse.
Sempre segundo o que consta no TD, diante de nova recusa, a patroa de Indaiá tentou retirá-la à força do apartamento, agredindo-a com socos, chutes e unhadas, que lhe feriram o rosto e o braço.
Depois de tentar atirar os dois celulares da vítima pela janela, além da bolsa pela porta da cozinha, Indaiá foi atacada com uma faca por Pâmela Bório, cujas investidas, ainda que impedidas pelo irmão da patroa que presenciava a discussão, forçaram a babá finalmente pegar o elevador e chegar a salvo no térreo do prédio, de onde ligou para o governador Ricardo Coutinho, que lhe enviou apoio.
Do local, Indaiá dirigiu à delegacia onde registou o ocorrido. A delegada que ouviu a babá solicitou a realização de exame de corpo de delito, quando ficaram constatadas “escoriações lineares no braço direito” e no dorso. Os documentos foram divulgados por sites pessoenses.
Pâmela, de agressora a vitima
Vinte e quatro horas depois de denunciada como autora da agressão, Pâmela Bório denunciou Indaiá como agressora. No dia 4, o blog de Helder Moura, que publicou o caso em primeira mão, relatou assim o ocorrido:
“O caso trata de uma tentativa de agressão envolvendo Pâmela e a babá, identificada por Indaiá. Segundo a ex-primeira-dama, a babá vinha apresentando-se como doente e quando ela pediu que ela voltasse para sua casa, para se tratar, Indaiá teria partido para a agressão física, dizendo que não iria e que só receberia ordens do pai da criança, referindo-se ao governador Ricardo Coutinho.”
Notem que pelo relato da ex-primeira dama, não apenas os papéis se invertem, como um novo personagem aparece na história: o governador Ricardo Coutinho. A inverossímil versão de Pâmela Bório, construída um dia depois dos acontecimentos, quando a babá já havia registrado a ocorrência, só se sustenta e ganha adeptos quando a figura quase onipresente de RC aparece para lhe oferecer ares de vítima nessa sórdida história, que repisa, como veremos, relações de poder históricas entre patroa e empregada – ou entre as sinhás da aristocracia colonial e suas “negrinhas” escravas.
O que impressiona é que alguns jornalistas já compram a história de Pâmela Bório, relegando a babá e a agressão por ela sofrida a um mero detalhe nisso tudo, e ajudam a converter a vítima em agressora, e vice-versa.
Violência contra empregadas domesticas: uma questão tristemente atual
No Brasil, o que é mais comum: patroas agredirem empregadas domésticas ou o contrário?
Não consegui dados oficiais para medir essa forma de violência, mas uma simples pesquisa no Google no permite ter uma dimensão do problema e o quanto ele é mais recorrente do que gostaríamos que fosse nos ambientes privados brasileiros.
A resposta à questão acima deve ser buscada, em primeiro lugar, considerando a importância dessa modalidade de trabalho, que é quase exclusivamente feminina (93,6% segundo a última PNAD Contínua) e predominantemente negra (61%), e a baixa qualificação dessa mão de obra (menos de 15% tem segundo grau completo).
Em segundo lugar e, sobretudo, na história. Não vou me alongar muito nessa abordagem, apenas citarei uma das mais conhecidas passagens de Casa-Grande e senzala, de Gilberto Freyre, sobre as violências cometidas pelas Sinhás contra suas escravas:
“Não são dois nem três casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes. Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença dos maridos, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos; ou mandava-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas.” (pp 392393).
Como acentuou Freyre, não foram dois nem três casos de violências horripilantes perpetradas por senhoras de família de firmes convicções cristãs contra escravas das quais se consideravam donas.
Era a vingança motivada em geral pela inveja ou só por ciúme. Era a mentalidade da “dona” sobre a “coisa”, sobre o “instrumentum vocale” como definiam os romanos na antiguidade, aquele que se diferia do animal apenas porque falava.
Babás e empregadas sem nome
O acidente aéreo envolvendo a família de Luciano Hulk e a abordagem da imprensa ao relatá-lo mostra bem o quanto ainda persiste essa lógica coisificada quando o assunto é trabalhadora doméstica.
A duas babás, tão presentes no avião quanto o piloto e a família do apresentador global, só foram citadas como um número, passageiras a mais daquele drama que quase lhes tirou a vida.
Mesmo quando o assunto foi o atendimento em hospital do SUS, para o qual todos os passageiros do voo, do qual elas poderiam fazer um juízo mais adequado, elas sequer opinaram.
E na matéria produzida pelo jornal O Globo sobre o acidente, todos os envolvidos tinham nomes (Luciano Hulk, Angélica, os filhos Benício, Joaquim e Eva, o piloto Otomar Fratini, o co-piloto José Flávio de Sousa), menos as duas moças que cuidavam das crianças, identificadas apenas como “duas babás”, pessoas (?) sem rostos, sem nomes, sem histórias.
Quem acha que essa mentalidade desapareceu por completo mais de um século depois que a escravidão foi abolida no Brasil tem uma visão no mínimo ingênua sobre o nosso país e a cultura senhorial que ainda permeia boa parte da nossa elite econômica.
Mais uma vez, a internet serve como instrumento para mapear esse preconceito doentio de pessoas incapazes de lavar um prato ou varrer uma sala. No twitter, foi criado um perfil cujo nome é “A minha empregada”.
Lá são postados os comentários que muitos twitteiros escrevem e publicam para o mundo tomar conhecimento do desprezo que nutem pelas pessoas que cuidam de suas casas e, às vezes, até dos seus filhos. Vejam alguns exemplos, se você tiver estômago (@aminhaempregada):
“the key tem cheiro de perfume de empregada velha”;
“O ódio q eu tô depois da empregada ter jogado minha comida da semana fora… Tnc e a fdp não fez outra”
“A filha da puta da empregada saiu e nem arrumou meu quarto filha da puta”
“A puta da minha empregada sumiu com a minha blusa branca que eu tanto amava”
“Vou mudar essa senha do Wi-Fi e ela vai se fuder, filha da puta. Agora tenho que ficar usando 3G por causa daquela piranha”
“que ódio da empregada!!! essa vaca falta e eu q tenho q limpar essa casa”
“preciso compra umas ropinha mais top , só tenho roupa de favelada , umas de faxineira e outras que tão furada\rasgada”
“Minha mãe só arruma faxineira esquisita. Quando n é uma favelada q fica me chamando de ‘colega’ o dia todo é velha carente que fica de papo”
“Tô igual empregada hoje de rasteirinha e trança pior que favelada”
“EU VOU MATAR A PESTE DA EMPREGADA PUTA MERDA”