Por Flavio Lúcio Vieira – Professor UFPB

A crise entre os poderes que vive a Paraíba no momento, aberta pela contestação por parte do Judiciário, do Ministério Público e do TCE à proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo à Assembleia, é um desdobramento da crise institucional que o país vive, hoje, cuja raiz pode ser encontrada no protagonismo que juízes, procuradores do Ministério Público e Tribunais de Contas assumiram nos últimos tempos.

São juízes que interpretam as leis ao seu bel prazer, é o STF que assume o lugar do Congresso e se põe a regulamentar leis, recriando-as, na verdade, são ministros do TCU e TCE que, em sua megalomania e, nem sempre orientados por interesses republicanos, tentam determinar quais obras ou programas dos governos devam ou não continuar. Em outras palavras, desejam interferir na governança sem ter a legitimidade de um voto sequer.

O partidarismo da justiça tem sido tão explícito que, em caso recente e paradigmático, o STF deu tratamentos distintos para casos semelhantes: acusado de obstrução da Justiça, o ex-senador Delcídio Amaral foi liminarmente preso e, quando o caso foi julgado no STF, todos os ministros concordaram com manutenção da prisão, decisão em aberto desacordo com a Constituição, como alertou à época muitos juristas.

Quando se tratou de Aécio Neves, entretanto, que foi flagrado em vídeo extorquindo o empresário Joesley Batista, o STF resolveu seguir − pasmem, como gostam de dizer alguns advogados da terrinha − a letra da Constituição, que é explícita nos seguintes termos: “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros” a prisão seja ou não ratificada.

Por que só no caso de Aécio Neves o STF resolveu cumprir a Constituição? Tem a ver com interesses políticos ou esses juízes esqueceram por completo um princípio caríssimo ao Estrado de Direito, que é o da equidade jurídica?

Por isso, não é surpreendente que o protagonismo judiciário chegue à Paraíba. Um estranho movimento está em curso cujo objetivo para contestar os valores destinados para 2018 a esses poderes e órgãos, que não aceitam ver reduzidos um centavos sequer dos seus gastos.

É o caso do Tribunal de Justiça, do Ministério Público e do TCE, cujos membros parecem viver em um país à parte. No mundo à parte dessas corporações não existe crise, desemprego, queda nos rendimentos da população, sobretudo a de baixa renda, e os recursos públicos parecem infinitos, especialmente quando se trata de pagar os já altos salários desses servidores – os maiores da República – e todo tipo de vantagem que elas se autoconcedem, e que nenhum servidor público sonha em um dia ter direito. Enquanto isso, a maioria dos trabalhadores brasileiros são obrigados a pagar aluguel, comida, transporte, educação dos filhos, e tudo isso com o miserável salário mínimo que se paga no Brasil.

Nesse mundo à parte de juízes, procuradores e membros do TCE, os tempos de fausto econômico e fiscal que o país viveu nos últimos 10 anos antes de 2015, continuam. E não como um sonho distante, como é para a maior parte do povo brasileiro, mas como uma doce realidade que só os donos do poder são capazes de se autoconceder, porque é assim que funciona.

Se nesses tempos de crescimento econômico essas vantagens já eram acintosas – assim como são acintosamente inconstitucionais, − nesses tempos de crise representam um escárnio para uma sociedade carente de tudo, sobretudo dos serviços de uma Justiça que, apesar de bem remunerada e cheia de privilégios – o que não acontece com nenhum país rico e desenvolvido − é lenta e ineficiente.

Para termos uma ideia do impacto financeiro para os cofres públicos com esses servidores, o salário bruto de apenas 118 juízes de 3ª Entrância da Paraíba, cuja remuneração média é de R$ 36.331 mil, ultrapassa os R$ 51 milhões de Reais anuais, o que representa valores próximos aos 8% do orçamento anual do TJ em 2017, que é de R$ 619,4 milhões.

Orçamento que, aliás, vem engordando ano a ano, sobretudo depois de 2011. Naquele ano, o TJ abocanhava 6,7% das receitas ordinárias da Paraíba, o equivalente a R$ 331,9 milhões de reais. Nos anos seguintes, esses valores aumentaram sistematicamente, com destaque para os anos de 2012 (aumento de 11,6% no orçamento do TJ e inflação de 5,84%) e 2015 (aumento de 19,9% e inflação de 10,67%). Nos últimos dois anos, mesmo com as quedas na arrecadação, o orçamento do TJ continuou a engordar: de 2015 para 2016 foi de R$ 584 milhões para R$ 586,5 milhões, e de 2016 para 2017 foi de R$ 586,5 milhões para R$ 595,9 milhões!

Como todo mundo sabe, as receitas aprovadas na Lei Orçamentária Anual são previsões de gastos que, claro, só se concretizarão depois das previsões de arrecadação de impostos também acontecerem.

Pois bem, quando observamos a execução do orçamento nos anos de 2016 e 2017 verificamos que a injustiça se apresenta com todas as suas cores tenebrosas. Enquanto as execuções orçamentárias do TJ foram de 94,8% (R$ 586,5 milhões) e 96,2% em 2017 (R$ 595,9 milhões), respectivamente, nesses dois anos, as do Ministério Público foram de 95,5% (R$ 228,8 milhões) e 97,5% (R$ 233,5 milhões), e as do TCE de 96,9% (R$ 128,4 milhões) e 100,1% (R$ 133,7 milhões, um milhão de reais acima do previsto), as do Governo do Estado tiveram uma queda brutal: em 2016, foi de 82,6%, ou 17, 3% a menos, ou seja, de uma previsão arredondada de R$ 10,4 bilhões tivemos uma execução de R$ 8,6 bilhões, 1,8 bilhão a menos.

Em 2017 a queda tende a ser ainda maior: com uma previsão de gastos já reduzida em quase R$ 75 milhões de Reais em relação a 2016 (10,435 bilhões para 10,361 bilhões), a execução até agora chega a apenas 78,6% e, mantida essa tendência, 2017 deve se concluir com uma redução de 2,2 bilhões (!) em relação aos gastos previstos para o ano.

Ou seja, enquanto o Executivo se viu obrigado a cortar gastos em razão da crise iniciada em 2015, que impactou violentamente na arrecadação do Estado, o TJ continuou incrementando suas receitas.

E com o agravante de que, nesses anos, apenas 0,25% e 0,29% do Orçamento do TJ, respectivamente, foram destinados a investimento na melhoria dos serviços prestados pela instituição, enquanto 14,07% e 10,7%, respectivamente, foram aplicados em custeio. Tudo isso pra que, em 2016 e 2017, nada mesmo que 85,68% e 89.01% do orçamento do Tribunal de Justiça da Paraíba fossem gastos com pagamento de pessoal!

Um acinte! Um escárnio! Enquanto isso, somos obrigados a conviver com a piora constante nas condições sociais do nosso povo, espremido entre a pobreza e o desemprego, e, por isso mesmo, cada vez naus dependente de serviços públicos.

Porque, como é óbvio, quando ocorre uma redução exponencial nos investimentos do governo, como aconteceu nos últimos anos, toda a população paraibana é afetada, sobretudo aqueles que mais dependem dos serviços públicos oferecidos do Estado que, além de pagar seus servidores, ainda é obrigado a comprometer do orçamento do Executivo com saúde (12%), com educação (25%), além dos gastos com precatórios, dívida pública, custeio dos órgãos do governo.

O mesmo não acontece com o TJ, MP e TCE, cujos gastos são quase que na sua totalidade com pessoal (salários e benefícios, gratificações, diárias, etc, etc., etc.), mesmo que isso também aconteça em explícito descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, que (Art. 19) obriga não apenas o Executivo a comprometer até 60% do orçamento com gasto com pessoal.

Enfim, as sociedades brasileira e paraibana veem se aprofundar cada vez mais o desequilíbrio entre os poderes da República, um desequilíbrio que rompe com um dos mais caros princípios das democracias modernas, porque submete os outros poderes ao julgo dos interesses de corporações que se assenhorearam do sistema Judiciário. E essa é a pior das ditaduras, porque é disfarçada de pseudolegalidade.

O grande problema que se apresenta para a relação entre os poderes é que, quem controla o Judiciário e dirime qualquer conflito é… o próprio Judiciário. Enfim, ao que parece, se esse conflito pudesse retratado através de uma metáfora futebolística seria mais ou menos dessa maneira: trata-se de um jogo na casa do time adversário, com as regras do jogo determinadas pelo time adversário, além do jogo ser apitado pelo presidente do time adversário.

E ainda querem que o povo se comporte como um mero torcedor. Que não nos mandem comer brioches quando o pão acabar!